O jogo em Quito e o fator casa
O Palmeiras levou três da LDU em Quito e, como já é de costume, voltou a discussão da altitude. Sempre que um time brasileiro perde nos Andes, fala-se menos de futebol e mais de oxigênio. É um tema velho, quase automático. Mas, sinceramente, não consigo comprar essa ideia de que jogar em altitude é injusto. O futebol é feito de vantagens, e o mando de campo é uma delas.
Os times se aproveitam do mando de campo. Todos. Só que o “mando de campo” tem muitas formas. O Bodø/Glimt, por exemplo, tem feito estragos na Europa, principalmente em casa. Por quê? Porque joga com temperaturas negativas e em gramado sintético. (E já deixei bem claro no artigo anterior que não sou fã de sintético, mas nestas circunstâncias entendo perfeitamente.)
Cada clube tira o que pode do seu contexto. É assim que se sobrevive e se vence.
A memória da altitude
Quem não se lembra daquela imagem de Anderson, antigo meio-campista do FC Porto e do Manchester United, jogando pelo Internacional contra o The Strongest, na Bolívia, com máscara respiratória? A cena correu o mundo e mostrou o que é realmente jogar a mais de 3.600 metros.
Hoje, um clube como o Palmeiras tem que estar preparado para encarar um jogo desses. A ciência, a logística e o profissionalismo já não permitem surpresas.
A verdade é que o Palmeiras tem agora outra montanha para escalar se quer chegar à final da Libertadores, perdeu 3 a 0 na ida, mas terá o seu próprio mando de campo, a sua “altitude” verde e branca, para tentar reverter o resultado.
Fator casa: não só altitude
Então por que razão os sul-americanos choram tanto quando sobem a Quito ou a La Paz?
Será cultural essa vitimização?
Como se jogar no Allianz Parque não fosse uma vantagem enorme para o Palmeiras. No fim de semana passado, perderam contra o Flamengo no Maracanã, e eu vi o jogo daqui de Portugal, finalmente em horários decentes (ahahah). A torcida do Flamengo estava incrível, empurrou o time do início ao fim. E ninguém disse que era “injusto” o Flamengo jogar com 60 mil pessoas gritando.
No fundo, tudo isso faz parte do xadrez que é o futebol. O ambiente, as viagens, o gramado, o clima, a altitude. Tudo conta. Todos os clubes têm o seu “inferno”.
Fala-se muito do Galatasaray, onde jogar é uma tortura pelo barulho e pelo calor das arquibancadas.
O mesmo se aplica ao River Plate, ao Estrela Vermelha de Belgrado, aos estádios britânicos onde as arquibancadas quase tocam o gramado – Celtic, Rangers, Leeds ou Liverpool – ou aos pequenos estádios espanhóis como o Rayo Vallecano e o Leganés, que transformam o seu espaço numa fortaleza.
Altitude: risco físico ou vantagem legítima?
A altitude castiga o corpo: a falta de oxigênio acelera o coração, causa tonturas, náuseas e dores de cabeça. Os músculos se cansam mais rápido e o raciocínio fica mais lento.
Mas chamar isso de “risco de vida” é exagerado. Estudos e médicos do esporte mostram que não há perigo real para jogadores saudáveis, desde que haja controle médico e hidratação. É desconfortável, sim, e o rendimento cai, mas o risco grave é raríssimo – mais associado a altitudes extremas ou a atletas com problemas cardíacos.
O futebol não é um tubo de ensaio
O meu ponto é simples: é impossível proibir aquilo que faz parte da tradição e da cultura dos clubes. O futebol não é apenas o jogo – é a defesa da tua terra, da tua gente e da tua identidade.
Tirar um time da sua casa só porque a cidade está acima dos 2.500 metros seria uma afronta à própria alma do esporte. A FIFA tentou fazê-lo em 2007, proibindo jogos internacionais em altitude. Voltou atrás um ano depois. E fez muito bem.
O futebol não é laboratório. É emoção, contexto e adaptação. Não há nada de errado em um clube tirar proveito do seu território – desde que haja condições médicas e logísticas básicas para os visitantes.
De resto, o desafio é o mesmo para todos: sobreviver aos 90 minutos, seja em Quito, em La Paz, no Maracanã ou no Dragão.
O jogo acaba sempre nos 90 minutos, seja onde for
O que separa os grandes dos comuns é a capacidade de se adaptar.
Porque o futebol não se joga só com os pés – joga-se com a cabeça, com os pulmões, com o coração – e, às vezes, com menos ar do que gostaríamos.








